domingo, 20 de abril de 2025

Poema Sujo (Trechos) - Ferreira Gullar

Sujo porque é real

Por Pinguim Urbano

Caderno molhado e rasgado jogado na calçada úmida, ao lado de um tênis preto, simbolizando memórias esquecidas e fragmentos de poesia urbana.

Poema Sujo é um poema imenso, com mais de 100 páginas em sua versão original. É considerado um dos poemas mais longos e intensos da literatura brasileira contemporânea. Vamos olhar alguns trechos...

“a vida não basta ser vivida
também precisa ser sonhada”

Essa frase, isolada, já diria muito. Mas dentro do Poema Sujo, ela vira prego. Um prego enferrujado, cravado numa parede de lembranças, perdas e vontades. Ferreira Gullar escreveu esse poema em exílio, mas não só político — ele estava fora de si. Deslocado do país, do corpo, do tempo.

O que ele faz aqui não é escrever poesia. É evacuar memória. Tudo o que doía, o que sumiu, o que ele não sabia onde guardar — virou verso. Um verso sujo porque não tem filtro. Porque respira mofo, chão de rua e saudade com gosto metálico.

“meu corpo que na infância era um graveto
que minha mãe vestia e despia
com pena e com carinho”

Aqui, o passado vem sem verniz. Não tem nostalgia bonita — tem magreza, tem necessidade, tem mãe tentando conter o mundo com pano e afeto. A infância em Gullar é precária. E por isso mesmo, verdadeira.

“porque há o mundo e o mundo precisa ser vivido
precisa ser entendido, amado, sofrido”

Essa é a parte que parece querer levantar. Mas é só pra lembrar que o mundo não se compreende só com raciocínio. Ele exige sentimento. Exige erro. Exige que você se suje pra entender o que é viver. Do contrário, você não vive — você só ocupa espaço.

“a memória me empurra
e se debruça em mim
como a mulher amada
no tempo que não vivi”

Saudade do que não aconteceu: isso aqui é Gullar em carne viva. É o peso do que poderia ter sido, mas não foi. O tempo que passou por ele sem deixá-lo participar. E isso gruda — como cheiro de cigarro em roupa de festa.

“e eu aqui imóvel, parado,
cercado de passos,
indeciso,
entre o que sou
e o que pareço”

A parte mais urbana do poema. O sujeito parado no meio do caos, sentindo o tempo passar por cima dele. É o retrato de qualquer um num terminal rodoviário às três da manhã. Cheio de vontades, mas sem saber pra onde ir. Essa indecisão entre o que se é e o que se mostra é o que mata em silêncio.

No fim, Poema Sujo é isso: uma carta de quem não pediu pra ser ouvido, mas precisava deixar marcas. Gullar não limpou nada. Jogou a sujeira no papel. E fez dela espelho pra quem tiver coragem de olhar.


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