terça-feira, 29 de abril de 2025

Todas as cartas de amor são ridículas – Álvaro de Campos

Ridículo é fingir que não sente

Análise por Pinguim Urbano • Selo: Clássicos Desfeitos

   
Todas as cartas de amor são ridículas

Todas as cartas de amor são
ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem
ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
como as outras,
ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
têm de ser
ridículas.

Mas, afinal,
só as criaturas que nunca escreveram
cartas de amor
é que são
ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
sem dar por isso
cartas de amor
ridículas.

A verdade é que hoje
as minhas memórias
dessas cartas de amor
é que são
ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
como os sentimentos esdrúxulos,
são naturalmente
ridículas.)

~Álvaro de Campos  

1. Introdução e Contexto

Fernando Pessoa, sob o heterônimo Álvaro de Campos, era o que mais carregava o peso das emoções no bolso — e o escondia mal. Escrito nos anos 1930, esse poema nasce num contexto de desilusão íntima: um tempo em que o modernismo avançava para desconstruir antigas formas de sentir e expressar amor. O próprio Álvaro, personagem construído para ser o poeta do excesso e do cansaço, aqui desabafa com amargura resignada. Não se trata apenas de amor — trata-se da vergonha de ter amado de verdade.

Pessoa, que cultivava heterônimos para dizer o que talvez não dissesse como si mesmo, aqui entrega um riso amargo: amar é ridículo, mas ser incapaz de amar é ainda mais.

2. Análise da Estrutura e do Eu Lírico

O poema repete a palavra “ridículo” como um martelo. É como se tentasse exorcizar o próprio sentimento através da ironia. O eu lírico não nega que escreveu cartas de amor — admite, quase como quem se entrega ao crime. Mas em vez de se orgulhar, ele se autocondena ao riso: “também escrevi cartas de amor, como as outras, ridículas.”

O **eu lírico** aqui é o homem que já olhou para trás e já se desiludiu da própria capacidade de amar sem se sentir exposto. Ele não lamenta a perda do amor — lamenta o fato de o amor inevitavelmente expor sua humanidade, sua fragilidade, seu lado ridículo.

A força do poema está exatamente na aceitação amarga: se existe amor verdadeiro, ele sempre será ridículo. Porque amar é ceder, é escrever bobagens com a seriedade de quem está construindo o universo. E, no fim, são essas bobagens que sobrevivem — mesmo depois que tudo o mais se desfaz.

“Quem me dera no tempo em que escrevia / sem dar por isso / cartas de amor / ridículas.”

Aqui surge o suspiro: uma saudade não da pessoa amada, mas do estado de inocência em que se podia amar sem cinismo. O que se perdeu não foi o objeto do amor — foi a capacidade de se entregar sem vergonha.

3. Reflexão e Expansão

No final, Álvaro de Campos não ridiculariza o amor. Ridiculariza a própria tentativa de negar o que é inevitável. No mundo urbano e cansado que entendo tão bem, fingir que não se sente é o maior ridículo de todos.

É melhor escrever cartas esdrúxulas, viver amores tolos, chorar no banco do metrô, do que envelhecer sem nunca ter sentido nada que faça alguém rir de você no futuro. O poema não é um adeus ao amor — é um bilhete clandestino em que Álvaro (e Pessoa) deixam escrito: “eu também amei. E não me envergonho de ter sido ridículo.”






Avatar do Pinguim Urbano

Nota do Pinguim: Esse poema me fez lembrar de algo que vi recentemente, eu vi um amigo sair devastado de um amor em que não houveram as "Cartas Ridículas" percebendo que antes dele houve tudo isso: toda pompa, toda felicidade, todo o se passar por ridículo.
Se existe algo que esse que vos escreve acha, é: Quando encontrarem um amor, amem, com intensidade, façam cartas de amor, Ridículo é calar o que se sente.

Eu vi um amigo ser destruído pelo silêncio...


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