“Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
– nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio”.
~Clarice Lispector
“Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.”
Clarice não pede permissão — ela estende a mão. É um convite frio e íntimo ao mesmo tempo, quase clínico. A mão que ela oferece não é gesto de afeto: é alavanca, bisturi, senha de acesso ao não-dito. E o que ela chama de “inexpressivo” não é o vazio — é o invisível. O intervalo. O lugar onde nada deveria existir, mas tudo pulsa.
“Entre o número um e o número dois.” Entre o antes e o depois. A poesia aqui não é a coisa — é a fenda. Clarice não escreve sobre o mundo; ela escreve sobre a rachadura do mundo. Aquela que ninguém vê, porque não se mede, não se fotografa, não se explica.
“Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,”
Isso é uma bofetada em quem vive de certezas. Clarice desmonta o concreto, pixel por pixel. O intervalo que ela revela não é só o entre — é o que mantém o resto de pé. É a margem que dá sentido à estrada. E talvez por isso ninguém queira olhar: o entre é incômodo. O entre é real demais.
No fim, ela chama isso de “respiração do mundo”. Mas não espere algo calmo, reconfortante. A respiração que ela ouve é contínua, sim, mas inquietante. E o nome que os surdos dão a isso é “silêncio”.
“...a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.”
Poesia não é catar palavra bonita. É escutar o que todo mundo chama de nada. Clarice escutou. E o que ela traz, com a mão estendida, não é revelação — é responsabilidade. Porque, uma vez que você ouve o silêncio, ele não te abandona mais.
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