O mundo não pesa mais
Análise por Pinguim Urbano • Selo: Clássicos Desfeitos
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice,
que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados)
morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
~Carlos Drummond de Andrade
“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.”
Drummond começa esse poema com uma sentença. Não é confissão, nem súplica — é diagnóstico. Chega um tempo em que tudo o que nos ensinaram a sentir já não faz sentido. Nem Deus, nem amor, nem lágrimas. Apenas a permanência da existência — seca, repetida, sem mística.
“O amor resultou inútil.” Duro, direto, sem espaço pra metáfora. O eu lírico não está triste — está esvaziado. As mãos não tocam. Elas apenas “tecem o rude trabalho”. O coração está seco, e isso não é metáfora: é condição.
“E nada esperas de teus amigos.”
Essa linha é a linha de corte. O desapego chegou até as relações mais próximas. Nada se espera, e isso não significa ódio ou indiferença. Significa fim. Um esgotamento emocional tão profundo que só sobra a sombra do vínculo.
“Teus ombros suportam o mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança.”
Aqui o poema vira pedra. O mundo não pesa porque já não importa. É o peso do costume. Quem carrega há tempo demais, já não sente. O eu lírico está anestesiado pela repetição de carregar o que não muda.
Drummond fala de guerras, fomes, edifícios — como se a tragédia fosse só um eco repetido. A vida prossegue, e esse é o problema. Porque quando tudo vira continuidade sem sentido, até morrer parece inútil.
“Chegou um tempo em que não adianta morrer.”
Essa é a frase final. Não é niilismo — é lucidez em carne viva. A morte não é mais saída. A vida é uma ordem. Uma exigência fria, sem espaço para poesia. “A vida apenas, sem mistificação.” E talvez, sem mais ninguém.
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