Ninguém sangra bonito
Por Pinguim Urbano
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.”
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
~- Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993)
A primeira linha já te derruba no chão — de ironia. Não tem metáfora nem firula. Álvaro de Campos (o mais ácido dos heterônimos de Pessoa) começa cuspindo a real: todo mundo diz que sofre, mas ninguém admite o vexame real da queda. Todo mundo quer parecer **forte com cicatriz**, mas ninguém confessa quando sangra de verdade.
“Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”
A crítica aqui não é ao sucesso — é à pose. Pessoa está enojado do teatro humano, da autopromoção travestida de humildade. Essa frase desmonta qualquer rede social antes mesmo de elas existirem. Todo mundo parece estar sempre bem. Todo mundo sabe viver. Menos ele. E isso é o que o torna mais honesto que todos.
O poema inteiro é uma espécie de grito calado de alguém cansado de ouvir versões embelezadas da dor. Ele quer a sujeira real. Quer o erro. O vexame. A feiura da existência. O problema, segundo ele, não é sofrer. É mentir sobre isso.
“E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,”
Aqui, Pessoa não está se humilhando. Está fazendo autópsia de si mesmo. E isso tem mais nobreza do que qualquer “fortaleza emocional” de vitrine. Ele sabe o que é ser contraditório. O que é falhar consigo mesmo. E expõe isso como quem esfrega os próprios cacos no rosto — pra lembrar que está vivo.
A análise fria: quem escreve esse poema não quer aplauso. Quer verdade. E num mundo que adora uma versão filtrada de si mesmo, Pessoa (ou melhor, o Pinguim que ele poderia ter sido) escolhe se exibir cru, falho e inteiro — do jeito que ninguém quer admitir ser.
“Arre! estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”
Esse é o grito. A frase que fica. A frase que ainda hoje caberia pichada num muro ou cuspida em um post ácido. Ninguém aguenta mais o “estar bem o tempo todo”. O poema é uma cobrança por humanidade. Mas não a ideal. A real. Aquela que falha. Que sente vergonha. Que se contradiz. E que, mesmo assim, não precisa de filtro nem desculpa.
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