O tempo me apagou na frente do espelho
Por Pinguim Urbano
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
~Cecília Meireles
“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro...”
Cecília não escreve sobre o tempo. Ela escreve com ele. E em Retrato, o tempo não é uma linha — é um apagador. A poeta olha pro espelho e não se reconhece. Não porque o rosto mudou, mas porque a alma evaporou aos poucos sem ninguém perceber.
O poema não é vaidade nem saudade. É constatação. De que existe um ponto da vida em que a gente se torna o retrato de alguém que não lembra mais quem era. “Eu não tinha este coração que nem se mostra...” O corpo virou vestígio. A emoção, reflexo esmaecido.
“Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil.”
Isso é o mais cruel: a transformação foi silenciosa. Não houve drama. Nem aviso. O tempo simplesmente passou, e levou com ele tudo o que fazia dela... ela. Como se a identidade tivesse escorrido por baixo da porta enquanto ela fazia café.
Cecília não grita. Mas também não consola. Ela só entrega o espelho — sujo, frio, duro. E pergunta: “Em que espelho ficou perdida a minha face?” Não há resposta. Só o eco da pergunta, como uma goteira emocional batendo noite adentro.
Essa é uma poesia sobre o sumiço interno. Sobre continuar existindo socialmente, mas emocionalmente estar sumida. Um poema perfeito pra quem já se sentiu presente num corpo que não reconhece mais. E continua indo, por pura obrigação de continuar indo.
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