segunda-feira, 21 de abril de 2025

Ode ao Gato – Pablo Neruda

Gato não se explica

Por Pinguim Urbano

 Gato preto sentado sobre um muro alto em uma rua urbana enevoada à noite, observando a cidade sob a luz suave de um poste.
    
Ode ao Gato (tradução)

Os animais foram imperfeitos,
longos de rabo, tristes de cabeça.
Pouco a pouco foram se compondo,
tornando-se paisagem,
adquirindo graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente acabado,
caminha sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cão é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para ser andorinha,
o poeta tenta imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
desde o bigode ao rabo,
desde o pressentimento rato
até a rosa das unhas.

Não há unidade
como a dele,
ele é absolutamente claro
e obscuro,
como a noite,
e o silêncio da pedra molhada.

Seus olhos têm
apenas uma fenda
que deixa passar moedas de ouro.
E depois dorme
no ritmo da chuva
e no sangue do gato
todas as forças se aliam,
um dia ele é apenas a sombra
de um vitral na catedral da noite,
no outro dia, salta como um raio
e morde como um relâmpago,
com garras floridas.

Não há mais silêncio
do que o do gato,
sua voz nada diz:
ronrona
como um motor suave,
é só o ronronar do gato
que nos faz perceber
que ele está perto.

Sua única pureza
é aceitar o mundo tal como é,
o gato apenas vive e basta,
e nessa sua maneira de estar
reside sua liberdade:
ser o que é,
sem esforço, sem fingimento,
sem culpa,
sem nada a provar.

O gato é um mistério com pelos
e não se explica nada.

~Pablo Neruda

“O gato é um mistério com pelos
e não se explica nada.”

Pablo Neruda escreveu uma ode, mas podia ter escrito um manual de sobrevivência. O gato, pra ele, não é só um bicho — é um conceito. Um ser que não precisa agradar, nem se justificar, nem pedir desculpas por existir.

Num mundo onde todo mundo tenta ser alguma outra coisa, o gato é só gato. E isso já basta. Ele não quer ser leão, águia ou símbolo de nada. Ele está ali, inteiro em si, do bigode ao rabo. E talvez por isso incomode tanto: o gato não precisa de plateia.

“O homem quer ser peixe e pássaro... o poeta tenta imitar a mosca... mas o gato quer ser só gato.”

Neruda aponta uma falha humana essencial: essa mania de não caber em si. De querer ser mais, ser outro, ser melhor. O gato não sofre disso. O gato não finge. E se finge, é por tédio — não por insegurança.

O silêncio do gato também não é vazio. É presença. Um ronronar que diz tudo sem falar nada. E o mais curioso: a gente sempre sente quando ele está ali. Mesmo quando ele parece ausente.

“Não há mais silêncio do que o do gato.”

Isso é brutal. Porque no fundo, a gente inveja esse silêncio. Essa capacidade de não reagir ao que não importa. O gato atravessa o mundo com autonomia de quem já entendeu tudo e decidiu não avisar ninguém.

No fim, Neruda presta uma homenagem ao que não precisa ser explicado. E isso, por si só, já é subversivo. Porque a gente vive querendo decifrar tudo. E esquece que talvez o essencial esteja em só existir — com pelos, com garra, com desprezo elegante. Como um gato.


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